quinta-feira, 20 de março de 2014

crônica afetiva #4 ou o complexo gretta garbo


Conservo em mim ares de derrotista. A presença da derrota, fixa nessa palavra, tem deixado algo na paisagem meio embaçado, escurecido, e tem me perseguido há algum tempo, sei lá. Quando me vejo, por exemplo, não me vejo. O derrotista tem um quê de perdido, cego, esquizofrênico. Ele se comunica na medida exata da necessidade, mas que isso não configure a ideia obscena de que o derrotista precise de ajuda. É como se todas as palavras – veja bem: um derrotista é incapaz de suster qualquer coisa raciocinada, unidade de sentido: a derrota ainda não chegou, mas já conservo ares de derrotista, as palavras se perdem, as olheiras estão aqui, fundas, e a unhas carcomidas não passam de reações que meu corpo materializam à medida verifico os rizomas da derrota – deixassem o lugar cômodo que habitam, para se tornarem memória e imagem de coisas gastas, absurdas, recorrentes. O derrotista se locomove conforme desabita o lugar-comum por simples inaptidão. É diferente do inconformista, por exemplo, que luta, luta, pela presença, pelo respeito, um lugar ao sol. A derrota não é lugar algum. A derrota não precisa de espaço, porque a resignação dos derrotados não cabe em espaços divisíveis, não se encontra nem se familiariza com corretos e incorretos, sins e nãos. Uma linha. A derrota é uma linha. Entre tudo isso que se anula. Haverá tantos derrotistas um dia, que chegarão a pensar os outros “istas” de algum tempo: mas isso é uma saída sorrateira, viver entre. Pois que chegue o tempo, aos derrotistas só cabe o presente. O entre mesmo. Porque o passado se anula, porque é doloroso o passado de um derrotista, e a dor a gente expele pra longe, não importa o “ista” que se seja, a não ser, os doloristas, dramáticos por excelência, e mentirosos sobretudo. E o futuro, é uma fonte de derrota iminente, o que configura, certamente, os pesadelos monstruosos de um derrotista, ser flagrado nu. O futuro é uma coisa nua, pensaria um derrotista agastado pelos desmates do tempo.

Eu, derrotado como me encontro, sinto cada vez mais perto meu corpo aproximar-se da linha, a mesma linha que une dois pontos distantes e a mesma que separa duas metades duma coisa qualquer, antes inteira. E é como se essa derrota fizesse vibrar qualquer coisa nessa linha, sabe? Como se cada estimulo de respiração, que involuntariamente meus pulmões executam desde não sei quando – o primeiro sopro dentro dos meus pulmões, imagino que tenha sido muito dolorido, a palmada é ínfima perto do seja o ar invadindo os pulmões pela primeira vez, seu cérebro agindo mecanicamente para registar mais esse impulso vital a ser repetido longamente... até que a derrota se instale -, como se cada vibração, cordas de violão, fosse um prenúncio, reafirmações superpostas de derrotas respiradas. Respiro o vento que passa pelos meus pés, altura e lugar em que me encontro. Derrota tem cara de chão.

Quando a derrota chega, inconscientemente o derrotista tem dois comportamentos, um de desejo: que sua mecânica cerebral, aquela mesma iniciada após sua expulsão do ventre – a primeira lufada de ar, ar de hospital, o que deve ser mais incômodo para a circunstância –, a respiração, pare. É como se o derrotista quisesse. Não. Não é voltar no tempo, rever, repensar, re-fazer qualquer coisa que impulsione a guinada, outra guinada. O derrotista não precisa disso. Nem se trata de querer sumir. Como morrer sem respirar. Parar a respiração é o mesmo que enervar-se. O derrotista reconhece no momento da derrota não sua plena incapacidade, como evocaria a ideia de derrota. Mais sensível, ele sente a inutilidade do esforço de perto. Ele cede. Prefere a elegância e a delicadeza dos que cedem espaço, por não conseguir vislumbrar a unicidade das coisas, nem conseguir enervar-se na cegueira que constrói os objetos de fé e desejo. Ainda que ele não consiga se situar dessa forma e com essas palavras, a situação derrotista faz com que tudo se posicione: os derrotistas surgem num estalar de dedos. E outro: o comportamento do chão. Os derrotistas sentem a necessidade mórbida e ontológica de estarem estirados no chão mais próximo quando a derrota se instala entre seus dedos, suas vísceras e os pulmões que não conseguem parar de respirar. Não se trata de morrer. Parar. É como se fosse o desvio. Porque.

A frustração por algo que lhe escapa ao corpo. Não. Não é isso. A derrota é uma condição de consciência dolorosa, de percepção aguda, 360°, o derrotista consegue vislumbrar para além dos muros: ficar, permanecer, é uma questão sua, só sua. Uma linha, a plenitude. O derrotista descobre, enfim, que não há urgência e nem sentido entre dentro e fora, senão pela anti-imagem de paredes que servem somente para esconder o que a gente faz das outras pessoas. Um derrotista está nu de paredes. Seu estado é pleno em qualquer lugar – e como sucumbem facilmente às doçuras doidas da mente, aquelas que jamais o senso comum, o ego em si, permitiria por para fora, não entendem os códigos estipulados para os dois lados trespassados pela linha. Para ele não há parede que proteja, que guarde, que omita, que esconda. Dessa mesma forma, ir ou ficar, morrer ou viver, não faz muita diferença para ele. Embora haja muitas dúvidas ainda em sua cabeça. Mais por uma questão de auto-piedade que de fé propriamente, ou qualquer coisa que o valha. Os derrotistas contam só com seus corpos afinal. Sucumbir, deixar de existir, como pensam alguns, não faz parte dos planos de um derrotista. Por não morrem, por não desejarem morrer é que querem mais ser produtos do presente: não vivem em função de adiar um gozo, ainda que seja a morte o gozo. Um derrotista não goza, ou goza de um jeito não reconhecido: há muitos jeitos de gozar quando se é um derrotista. Um derrotista simplesmente está. Por isso viver ou morrer é indiferente quando se tem o presente como o tempo único.
Por isso é importante entender: estado pleno é diferente de estado adequado. Mas um não anula o outro, antes se encontram, separam-se. As palavras estão gastas e os derrotistas cansados. Exercícios diários de reificação e louvor a derrota? Nunca assumem que cultuam a derrota. Isso seria ter fé. Fé na dor? Acho difícil. Os derrotistas sentem horror à dor e à piedade. Se bem que o altruísmo que convoca e envolve a presença do derrotado contenha algo de piedoso. Os inconformistas sim, esses são impiedosos, gostam da medida. Os derrotistas, nesse aspecto, se parecem com os conformistas. Mas esses são tão... coniventes, irracionais, espaçosos.

O derrotista é uma especialista em perder. E em matar.

crônica afetiva #3


[Sonho com quedas iminentes, sempre sonho que caio de algum precipício. Quando não, o sonho, a imagem em si, tudo some. Aí eu caio. Caio num vazio claro e sem fim, tem coisa mais arrepiante que cair sem fim? O peso do seu corpo incidindo sobre o calculo da velocidade da queda. E ainda assim saber que não há nada, apenas cai-se. Nem o vento, nada que possa verificar a sensação de queda, exceto pelos sonhos serem sem noção, muito sem noção. A ponto de você verificar a intensidade da força gravitacional. Ou seja, cai-se. Mas não se sente. E se serve de consolo, há apenas um fundo verde. Verde claro; cai-se, mas, por incrível que pareça, o verde é do mesmo tom duma camiseta que não lhe sai da mente. Cai-se. E chega um momento em que o verde, o mesmo verde da camiseta que não lhe sai da mente, se torna algo como esperança. De que chão o chegue, de que o enigma do sonho encerre, ainda que jamais seja percebido. De que o atrito aconteça. Cai-se e não se sabe para onde vai. Mas desejar chegar a algum lugar, observada a velocidade com se cai, dá medo. A esperança de que seja um sonho. É um sonho. Antes do atrito a gente acorda. Acorda mesmo? E aí é a parte mais importante para um derrotista, como eu: não é possível se desvencilhar do sonho, abandoná-lo como quem joga uma sacola cheia de  lixo. Cai-se num sonho, num pesadelo, vai caindo, e não é possível acordar. O seu pé mexe, a garganta seca, é possível sentir os lençóis entre os dedos, emitir algum grunhido. Mas, como acontece à circunstância do sonho, esses sonhos só aparecem quando você se encontra em semelhante estado: só. Cai-se só. O que é duplamente pior. Não dividir o desespero do despencamento. Cai-se e sonha-se só. Dorme só. É inútil pedir ajuda. O tempo se alonga, e depois a queda, sabe, você acostuma. Não acostuma. Na verdade, o sonho se reconfigura. Agora você vê outros detalhes da queda. Parece que a morte realmente aparece. O grande trauma consciente se transformando num monstro. A queda pode chegar ao fim, e aí? Chega-se a alguma superfície mais dura que seu corpo? E a velocidade com se chega? Acorda-se? Na frente dum revolver, o medo da morte num sonho sem noção, mas que parece muito real, é a mesma coisa. O medo de sentir a bala perfurando o ventre, de vazar-se sangue, morrer, é semelhante ao atrito que agora é inadiável. Seu corpo convulso e suado sobre a cama agora é medo e pavor. E queda. Você já tem convicção de que se trata de um sonho. Mas é incapaz de acordar. A velocidade parece que aumentou. Algo vai acontecer. Acorda-se ou morre-se. Como a única bala dentro dum revolver. Chegou. Acorda. A atmosfera silenciosa do seu quarto escuro. Como se realmente você tivesse caído de uma grande altura, essa sensação boa. Não de estar vivo, não. Essa sensação boa de estar no chão, de que a queda cessou. De alguma forma, sabe-se, permanece-se vivo nos sonhos, ainda que morra neles.]

crônica afetiva #2


o que uma pessoa normal (leia-se: uma pessoa não adornada pela monstruosidade de constatar a ausência do que seja a felicidade - que não é INfelicidade, não, só não é essa coisa sem sal e depende, é outra coisa, normalidade, satisfação, talvez, reconhecimento, existência, o escambal), numa manhã de sábado pilhada de roupas sujas, é capaz de sublimar, enquanto lê "a idade da razão", de jean-paul sartre:
eu me sinto encharcado como alguma personagem passional de jean-paul sartre. sabe o que significa passionalidade, não sabe? e em jean-paul sartre? é a coisa gratuita, cara. o sentido pleno. tudo bem que a marcelle fosse passional – era esse o nome da infeliz –, mas é que sinto sempre o sartre a descrevendo como se ela fosse um pedaço de carne, isso só me inspira instintos como o de esfaqueá-la seguidamente, como numa tentativa de acertar o alvo várias vezes, talvez pra alargar o tamanho da ranhura feita pela fúria descontrolada de minhas mãos amoladas de imaginação instintiva e repugnância, pra usar suas palavras próprias. não é o que ocorreria. talvez o descontrole me fizesse errar. um quadro inspirado em pollock, realizado no corpo de marcelle: sangue e formas abstratas realizadas sobre sua pele com um cutelo afiadíssimo. uma performance? marina abramovich riscou com uma navalha a imagem duma estrela em seu abdómen. nunca mais fui o mesmo depois que vi aquilo. é impossível dominar isso que concretiza a imagem, uma imagem composta pelos imediatismos da associação? não. essa é a fuga mais sorrateira. e negar a vontade? lapso linguístico?