quinta-feira, 20 de março de 2014

crônica afetiva #3


[Sonho com quedas iminentes, sempre sonho que caio de algum precipício. Quando não, o sonho, a imagem em si, tudo some. Aí eu caio. Caio num vazio claro e sem fim, tem coisa mais arrepiante que cair sem fim? O peso do seu corpo incidindo sobre o calculo da velocidade da queda. E ainda assim saber que não há nada, apenas cai-se. Nem o vento, nada que possa verificar a sensação de queda, exceto pelos sonhos serem sem noção, muito sem noção. A ponto de você verificar a intensidade da força gravitacional. Ou seja, cai-se. Mas não se sente. E se serve de consolo, há apenas um fundo verde. Verde claro; cai-se, mas, por incrível que pareça, o verde é do mesmo tom duma camiseta que não lhe sai da mente. Cai-se. E chega um momento em que o verde, o mesmo verde da camiseta que não lhe sai da mente, se torna algo como esperança. De que chão o chegue, de que o enigma do sonho encerre, ainda que jamais seja percebido. De que o atrito aconteça. Cai-se e não se sabe para onde vai. Mas desejar chegar a algum lugar, observada a velocidade com se cai, dá medo. A esperança de que seja um sonho. É um sonho. Antes do atrito a gente acorda. Acorda mesmo? E aí é a parte mais importante para um derrotista, como eu: não é possível se desvencilhar do sonho, abandoná-lo como quem joga uma sacola cheia de  lixo. Cai-se num sonho, num pesadelo, vai caindo, e não é possível acordar. O seu pé mexe, a garganta seca, é possível sentir os lençóis entre os dedos, emitir algum grunhido. Mas, como acontece à circunstância do sonho, esses sonhos só aparecem quando você se encontra em semelhante estado: só. Cai-se só. O que é duplamente pior. Não dividir o desespero do despencamento. Cai-se e sonha-se só. Dorme só. É inútil pedir ajuda. O tempo se alonga, e depois a queda, sabe, você acostuma. Não acostuma. Na verdade, o sonho se reconfigura. Agora você vê outros detalhes da queda. Parece que a morte realmente aparece. O grande trauma consciente se transformando num monstro. A queda pode chegar ao fim, e aí? Chega-se a alguma superfície mais dura que seu corpo? E a velocidade com se chega? Acorda-se? Na frente dum revolver, o medo da morte num sonho sem noção, mas que parece muito real, é a mesma coisa. O medo de sentir a bala perfurando o ventre, de vazar-se sangue, morrer, é semelhante ao atrito que agora é inadiável. Seu corpo convulso e suado sobre a cama agora é medo e pavor. E queda. Você já tem convicção de que se trata de um sonho. Mas é incapaz de acordar. A velocidade parece que aumentou. Algo vai acontecer. Acorda-se ou morre-se. Como a única bala dentro dum revolver. Chegou. Acorda. A atmosfera silenciosa do seu quarto escuro. Como se realmente você tivesse caído de uma grande altura, essa sensação boa. Não de estar vivo, não. Essa sensação boa de estar no chão, de que a queda cessou. De alguma forma, sabe-se, permanece-se vivo nos sonhos, ainda que morra neles.]

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